Ressocialização: “Se eu soubesse que trabalhar era bom, não tinha ‘mexido’ com tráfico”

  • Assessoria/TJ-MS
Foto: Divulgação/TJ-MS
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Acordar às 5 horas da manhã, tomar café, ir ao trabalho, almoçar ao meio-dia, voltar para casa depois das 16 horas, e ter um salário no final do mês é uma rotina nova para Marcelo da Silva Venci Guerra, de 23 anos, que fala com orgulho da vida que tem agora, depois de ter cumprido dois anos e cinco meses de pena no regime fechado e ter progredido para o semiaberto. Desde abril ele está na condicional, mas continuou trabalhando no Curtume e Graxaria Qually e garante: “Se eu soubesse que trabalhar era bom, não tinha ‘mexido’ com tráfico”.

Marcelo trabalha no curtume graças a um programa idealizado pelo Poder Judiciário de Mato Grosso do Sul, por meio do juiz Albino Coimbra Neto, e, neste caso, a sensibilidade do empresário Jaime Vallér que viu, além das vantagens financeiras, uma clara noção do dever social que todo cidadão deve ter.

O juiz Mário José Esbalqueiro Júnior, da 2ª Vara de Execução Penal da Capital, aplaude o sucesso do programa. Independente de 20 ou 30 vagas de trabalho para presos, o que interessa é que com esses empresários o sistema funciona e vários exemplos como o de Marcelo podem ser contados. Ele inclusive espera a sensibilização de mais empresários para ampliar cada vez mais o programa de trabalho de presos. “Vai muito além da vantagem financeira”, comentou. 

Existem pessoas que criticam o programa. “Já ouvi pessoas dizendo que um criminoso está tirando o emprego de um pai de família. Mas isso não é verdade, porque essa pessoa que errou, muitas vezes também é pai de família e tem seus filhos para sustentar. Segundo, se nós não colaborarmos para que ela pare de errar, pare de se meter com ações criminosas, ele vai assaltar e roubar o próprio pai de família. É um ciclo”, explica Esbalqueiro, completando que não adianta olhar apenas para o próprio umbigo, é preciso buscar o melhor de cada um. “Se pensarmos só em nós, estamos pensando pequeno e amanhã a gente pode ser o próximo prejudicado”, arrematou.

O testemunho do administrador de pessoal do Curtume, Rondineli Ferreira Gomes, confirma as constatações. “Só com o trabalho é possível ressocializar. Se não tiverem a oportunidade, eles não se regeneram”. Rondineli diz que é gratificante trabalhar com ele e inclusive fala com conhecimento de causa, pela experiência que tem com um familiar que faz parte do programa, já passou pela Centro Penal da Gameleira e agora está com a tornozeleira.  “É muito difícil eles terem espaço, alguém que os contrate. Essa é uma oportunidade e faz toda a diferença no processo de recuperação. Sem trabalho dificilmente voltam à sociedade de forma digna”, explica o administrador, que recomenda o programa para outras empresas.

Com o programa de MS é possível afirmar que existem alternativas para o sistema carcerário brasileiro e muitas delas são previstas na própria legislação, mas nem sempre são aplicadas. O que falta na realidade é o comprometimento de todos, para que sejam postas em prática ações que procurem reduzir os níveis de violência e auxiliem na recuperação do detento. Em Mato Grosso do Sul, há alguns anos já se trabalha para mudar essa realidade e os resultados começam a aparecer.

Marcelo é um dos 12 presos que passaram por todo o programa no Curtume e agora, mesmo depois da pena, estão empregados e em busca de um futuro melhor. Ele garante que não volta nunca mais para as grades. Não vai errar mais, aprendeu a trabalhar e tem uma vida normal, comprou até mesmo uma moto para sua locomoção e ajuda a mãe com quem mora nos três últimos meses. Ele é fruto desse programa que proporciona um salário-mínimo para os que trabalham, com desconto de 10% para o fundo do convênio, que entre outras coisas é revertido para programas, inclusive com o Pintando e Revitalizando a Educação com Liberdade.

Para o juiz Esbalqueiro, com o programa também se ganha com a segurança. “Sabemos que o preso sai da colônia agrícola e vai até o trabalho realmente. A empresa responsável fiscaliza e nos comunica qualquer falha e falta de dedicação. O próprio preso tem receio de voltar para o regime fechado. Nas saídas tradicionais acontecem muitas fraudes, fugas ou até fazem de conta que trabalham. Não há como fiscalizar”, comentou. Esse é um conjunto de atributos que permitem ao indivíduo tornar-se útil a si mesmo, à sua família e á sociedade.

No Curtume hoje são 180 pessoas registradas e mais 40 pessoas vindas do programa do sistema prisional. Além de trabalharem com o couro, a empresa utiliza a mão de obra dos presos para a construção civil, elétrica, mecânica e a resposta é sempre positiva. O convênio foi celebrado em agosto de 2015 e já atendeu centenas de pessoas. A vantagem financeira para a empresa é que não existem encargos sociais, férias e décimo terceiro salário. Esse é o ganho financeiro e os trabalhadores produzem tanto quanto ou até melhor que os funcionários do quadro. “Eles querem garantir um emprego depois”, comentou Rondineli.

Outra realidade – Uma questão levantada pelo juiz Mário Esbalqueiro chama a atenção para a urgência de se conseguir melhorar esse complexo processo de ressocialização. “É cada vez maior o número de pessoas que acabam presas sem nunca terem trabalhado na vida. Há algum tempo isso era diferente, os jovens que se envolviam em crimes já ajudavam os pais ou tinham feito pequenos trabalhos na vida. Hoje não, eles estão totalmente sem saber trabalhar e, quando saem do sistema penitenciário, não tem perspectiva”, constatou preocupado o juiz, lembrando até de um caso em que um preso reincidente o agradeceu quando voltou para o Centro Penal da Gameleira, porque lá ele teria um trabalho.

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