Paraguaios ainda perseguem tesouros enterrados na guerra com o Brasil

  • The New York Times
5.jul.2013 - Trabalhadores procuram por barra de ouro enterrada durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), em u... (Jorge Adorno/Reuters)
5.jul.2013 - Trabalhadores procuram por barra de ouro enterrada durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), em u... (Jorge Adorno/Reuters)

Nas profundezas tropicais da América do Sul, a caçada não para. Enterrados sob ruas de terra vermelha, ou talvez à sombra de mangueiras nos campos ao redor, tesouros opulentos estão espalhados por centenas de quilômetros --pelo menos segundo uma fábula que impregna o subconsciente cultural do Paraguai há gerações.

Os tesouros são conhecidos como "plata yvyguy" na língua nacional gutural do país. Acredita-se de modo geral que eles foram escondidos pelo governo e pela elite que fugiu em pânico da capital, Assunção, a apenas 20 km a noroeste, quando as forças de ocupação avançaram durante a Guerra da Tríplice Aliança, chamada no Brasil de Guerra do Paraguai, contra Brasil, Argentina e Uruguai há 150 anos.

Mas o passar do tempo não diminui a esperança de descobrir toneladas de metais preciosos, baús com libras britânicas e, os mais cobiçados, abacaxis ornamentais forjados em ouro.

"O Paraguai está cheio de 'plata yvyguy'", disse Juan Alberto Díaz, 57, um caçador de tesouros em tempo integral em uma parte rural desta pequena cidade. Os vizinhos de Díaz fabricam tijolos, e o calor rola como o bafo de um forno pela terra salpicada de bois e arbustos de "guava". "Todo mundo que sabe que ela existe a está procurando."

Nos últimos anos, oficiais militares de alta patente, prefeitos, o irmão de um presidente, arquitetos, médicos e trabalhadores foram consumidos pela lenda: planejaram expedições, decifraram mapas, varreram lugares com detectores de metal e percorreram vastos territórios.

De muitas maneiras, é uma das maiores caças ao tesouro da época moderna nas Américas. Em diferentes países, a natureza dessas caçadas varia. Nos EUA, continua a busca nas Montanhas Rochosas por uma arca de tesouro escondida por um comerciante de arte excêntrico. No Peru, o saque de antigos sítios nas últimas décadas chegou a ameaçar o patrimônio arqueológico do país.

O trabalho de evitar que uma cena igualmente triste ocorra no Paraguai cabe a Ana Rosa Lluis O'Hara, atual diretora do órgão oficial que cuida do patrimônio cultural. Ela tem uma investigação de 64 páginas sobre Díaz e recusa pedidos de autorização para escavar, em seu escritório no porão da biblioteca nacional, citando uma lei que protege artefatos e sítios arqueológicos.

"É uma ameaça para nosso legado cultural", disse Lluis O'Hara.

As discussões irrompem aqui porque o código civil do país inclui dispositivos que podem dar direito de propriedade aos descobridores de tesouros ocultos. Mas esses dispositivos não se aplicam a artigos de valor histórico, incluindo a maioria dos artefatos de guerra, segundo assessores jurídicos do governo.

Sentado junto de um buraco de 3 m de profundidade parcialmente coberto por ferro corrugado --restos de uma escavação recente que fracassou--, Díaz, um ex-comerciante de produtos eletrônicos, lembrou uma escavação audaciosa que ele liderou em 2013 e que atiçou a curiosidade de todo o país.

Em uma tentativa, Díaz e vários outros caçadores de tesouro, autorizados pelo prefeito de Capiatá na época, Antonio Galeano, abriram um poço com escavadeiras aqui, no lugar onde acreditavam haver detectado 13 toneladas de ouro em barras.

Em duas semanas eles tinham desenterrado uma pesada arca de aço, disse Díaz. Mas então um promotor federal mandou interromper a caçada, acusando Díaz de pôr em risco um importante aquífero e ordenando que o poço fosse fechado.

Outro caso de destaque, em 2006, envolveu um importante grupo de autoridades, incluindo um juiz da Suprema Corte e um general, orientados por um dentista que possuía um mapa do tesouro.

Enrique Rivera, que era então prefeito de Assunção, deu-lhes autorização para vasculhar o Parque Caballero, no centro da cidade, sob a condição de que parte da descoberta fosse para a Prefeitura. Mas a caçada foi interrompida quando moradores ligaram para uma estação de rádio, denunciando o grupo e alertando a promotoria pública.

Mais recentemente, em 2014, três homens morreram escavando em busca de tesouros em uma das cidades-satélites de Assunção.

A maioria dos paraguaios parece acreditar na teoria por trás da "plata yvyguy", considerando possível que no meio de uma guerra selvagem a elite de Assunção tenha enterrado pequenas fortunas. Os tesouros do Estado teriam sido retirados da cidade em trens e escondidos ao longo das linhas férreas ou em morros próximos.

Mitos selvagens hoje dão cor à caçada. "Há tanta fantasia, invenção e humor", disse Jorge Rubiani, 71, um arquiteto e ex-secretário da Cultura de Assunção que escreveu sobre os tesouros. "A história foi reduzida a um conto idiota."

Alguns acreditam que os tesouros são defendidos por seres sobrenaturais como Karai Pyhare, o negro "Cavaleiro da Noite" encarregado de proteger a natureza. Outros dizem que as famílias ou mesmo o governo mataram soldados paraguaios e os enterraram com suas fortunas na esperança de que seus espíritos agissem como guardiões. Fogos-fátuos misteriosos brilhariam à noite nos locais onde os tesouros foram guardados.

Em suas buscas, muitos caçadores contratam videntes para encontrar as fortunas ocultas. Outros recorrem a mãos experientes como as de Francisco Moreno, 68, um trabalhador portuário aposentado que é cativado pela "plata yvyguy" desde que sua avó lhe contou sobre o tesouro que ela descobriu há quase 80 anos: uma urna de barro cheia de moedas espanholas.

Os paraguaios que sentem que pode haver um tesouro em seus quintais pagam a Moreno o equivalente a R$ 640 por dia para visitá-los em seu veículo esportivo-utilitário Mitsubishi 1994 equipado com detectores de metal, que ele também vende para caçadores novatos.

Demonstrando os detectores no jardim de sua casa em Assunção, cheio de figueiras e palmeiras, Moreno disse que desenterrou moedas em alguns lugares, mas nunca em grande volume. Mas ele persiste.

"Um pessimista nunca triunfa", afirmou Moreno com um largo sorriso, exibindo um dente de ouro.

Existe até um conjunto de mapas duvidosos que detalha a localização de tesouros em toda esta parte central do Paraguai, que teriam sido desenhados por Domingo Francisco Sánchez, vice-presidente de Francisco Solano López durante a Guerra do Paraguai.

A caça ao tesouro em massa absorve este país em tal medida que cineastas e autores dedicaram obras a ela. "Está no DNA do Paraguai", disse Miguel Rodríguez, 37, diretor de um filme de baixo orçamento ("Latas Vacías") sobre caçadores de tesouros rurais, lançado em 2014. "Quem não quer ganhar na loteria?"

São muitas as teorias sobre as origens dos tesouros, com explicações obscuras que envolvem faraós egípcios e o movimento das placas tectônicas. Uma teoria popular é a de que durante a época colonial vários galeões espanhóis que rumavam para o oceano Atlântico carregados de metal precioso das minas da Bolívia naufragaram no rio Paraguai. Outras citam os missionários jesuítas do século 17.

Mas a crença mais comum, endossada por proeminentes historiadores locais, como Alfredo Boccia Romañach, é que tesouros de família que incluíam joias, relógios e porcelana foram enterrados pelas famílias ricas durante sua fuga de Assunção em 1868, quando o Paraguai perdeu uma batalha decisiva para as forças lideradas por brasileiros e o governo ordenou a evacuação da cidade. Os historiadores também dizem que é muito provável que reservas de metal precioso do governo tenham sido escondidas pelo presidente da época, Solano López.

A vasta maioria desses tesouros, alguns dos quais também foram guardados em buracos em paredes, foi roubada quando as tropas inimigas saquearam a cidade, disse Boccia Romañach.

"Os brasileiros destruíram Assunção, incendiaram as casas para continuar procurando durante a noite", disse o arquiteto Rubiani. "Eles provavelmente encontraram a maior parte do tesouro." Mas isso não desanimou os caçadores.

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