Minha Benzedeira

  • Mazé Torquato Chotil
Minha Benzedeira

Recebi, nesta semana, o exemplar papel da coletânia Mato Grosso do Sul 40 anos, organizada pelo escritor Rogério Fernandes Lemes e tendo textos de 40 escritores. Entre eles, meu conto abaixo.

Bom final de semana

Dona Maria benzedeira era uma dessas mulheres que existiam no interior do Brasil, no campo ou nos vilarejos, quando médicos eram escassos e doenças precisavam ser curadas.

Elas estavam lá, aprendiam, "recebiam o dom de Deus". Portanto, não era preciso pagamento por isso. Pagava não, mas talvez porque os doentes não tinham condições de fazê-lo. As benzedeiras andam escassas hoje em dia. Dona Maria conhecia ervas e suas serventias. Será que um dia frequentou escola? Tinha muita sabedoria e dividia-a com muita gente.

Era benzedeira, mas também parteira, amiga, salvadora de vidas no sítio onde morávamos e depois, no vilarejo para onde ela e nós fomos morar, na então vila Glória, área da CAND - Colônia Agrícola Nacional de Dourados. Me lembro bem daquela tardezinha, pelas cinco horas da tarde, quando o sol já estava mais fraco e mamãe me mandou levar o Carlinho para ser benzido. O caçula de 18 meses estava amorfo, sem querer brincar, com febre de dois dias.

Mamãe utiliza, para curar nossas doenças, chás. Começou a dar ao menino chá de hortelã com alho, mas também mandou benzer. Tem muita fé nas benzas e, sobretudo, nas da dona Maria, nossa velha conhecida.

Menina de 10 anos, chinelas nos pés, vestido de um tecido de algodão branco de florzinha vermelhas, tenho Carlinhos apoiado no quadril direito, para sentir menos o peso. Uma tradição das mulheres de casa. E, não me lembro de ter visto nenhum dos meninos cuidar de uma criança pequena. Conheço o caminho. Já levei muitos pequenos para dona Maria benzer, na sua casa distante da nossa de umas três a quatro quadras.

Mamãe não tinha tempo de interromper os trabalhos de casa para levar a criança, portanto tinha nossa ajuda. Dona Maria, que já partiu para as estrelas, amiga da família, "comadre" por estes serviços prestados, não recebia recompensa. Se tinha esse dom, era porque foi dado por Deus. Mas as pessoas não precisavam acreditar nele, não! Ela recebia todo mundo. Ora, acreditar era necessário naquele lugar tão distante de tudo que não conseguia imaginar que existissem outras realidades que aquela nossa.

A casa da dona Maria é de madeira coberta de telhas vermelhas. Na sua frente, entre a cerca, também de madeira, e a casa, tem um jardim com flores e plantas. Sinto um perfume que deve ser da "dama da noite". Essa flor branca, de pétalas estreladas, que durante o dia parece esquecida e que desde que o sol vai se pondo, se transforma, exala um perfume inconfundível. A porta da casa está aberta, como de hábito. Não consigo bater palmas, tenho um braço que segura o irmãozinho. Chamo alto para chamar a atenção de quem está dentro:

- Dona Maria!?

...

Ninguém responde. Será que não ouviu ou não está em casa? Deixo passar um tempo e como não vejo ninguém, tento novamente com força:

- Dona Maria!

Ouço então um som vindo do interior. Logo mais eu a vejo na porta. E uma senhora grande, morena de cabelos crespos cobertos com um lenço. Tem um par de brincos de ouro nas orelhas, única riqueza visível. No nariz um par de óculos. Deve ter uns 40 anos. E viúva e tem três filhos. Veio do sítio depois da morte do marido para que eles pudessem trabalhar na "vila".

- Entra, filha.

- Mamãe mandou trazer Carlinhos pra senhora benzer.

Não precisava dizer nada, ela sabia, estava acostumada a me ver com criança nas "cadeiras", como dizíamos quando as colocávamos no quadril. Aliás, não era somente eu que freqüentava sua casa com estes fins. Já tinha cruzado outras pessoas em outros momentos. Crianças pequenas, mas também adultos.

Entrei e sentei numa cadeira da sala, indicada por dona Maria, frente à pequena mesa em cima da qual a imagem de Nossa senhora aparecida nos olhava sem nada dizer. Sento e coloco Carlinhos no meu colo. Ele não diz nada, não chora, não reclama...

Dona Maria vai para os fundos da casa e volta com um ramo de arruda. Deve ter um pé desta planta para estes fins estes. É sempre arruda que ela utiliza. Lá em casa também tem um pé desta planta que mamãe gosta porque diz que impede os maus olhados.

Dona Maria para na nossa frente, faz o sinal da cruz nela mesma e depois no Carlinhos. No Carlinhos com o ramo de arruda. Seus lábios começam a se mexer, diz algo tão baixo que não consigo entender. Não sei se é uma reza ou algo como um canto em outra língua.

Desde quando benze? Como é que aprendeu? Tradição africana, indígena ou europeia? Mamãe não conhecia benzedeiras no lugar onde vivia no sul do Ceará. Foi quando morava no sítio que uma outra comadre ao ver uma criança doente, longe da vila, onde só tinha um farmacêutico, lhe dizia "manda benzer essa criança, comadre!"

Dona Maria também fazia partos quando morava no sítio. Agora, não sei. Ela continua benzendo, fazendo o sinal da cruz com o ramo de arruda enquanto seus lábios continuam a se mexer e dizer algo que não entendo.

O ramo de arruda que fez inúmeras vezes o sinal da cruz em face do pequeno, perdeu o vigor de alguns minutos atrás, do começo da benza! Está quase que sem vida. Murchou. Dona Maria coloca-o ao lado da Nossa Senhora Aparecida, se ajoelha em frente dela, põe as mãos no rosto e continua a dizer algo que não entendo. Em seguida, se levanta, coloca as mãos na cabeça do menino e diz:

- Até amanhã!

Sei que são três dias de benza, que o menino ficará bom a cada dia que passa. E mamãe continua a lhe dar o chá de hortelã com alho. Ele já me parece menos doente e assim que comer vai ficar mais esperto.

- Até amanhã!

Dona Maria benze mau olhado, dor de cabeça e não sei o que mais. Mamãe tem muita fé, reza muito, faz promessas para alguns santos... e conta com os serviços de dona Maria.

Comentários
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  • Fabiana

    Fabiana

    Onde encontro dona Maria a benzedeira ou alguma outra benzedeira em Dourados?