Mãe foge das histórias de menino e escolhe contar Cinderela ao filho toda noite

Para ele aprender desde cedo como tratar corretamente uma mulher.

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Desde os três meses de vida Isaac ouve da mãe historinhas antes de dormir. (Reprodução)
Desde os três meses de vida Isaac ouve da mãe historinhas antes de dormir. (Reprodução)

"Talvez eu devesse contar pro Isaac apenas 'João e o Pé de Feijão', 'João e Maria' e 'Os 3 porquinhos'. E até conto todas essas. Mas a preferida dele antes de dormir tem sido a "Cinderela". E quando a história acaba, ele com os olhinhos virando pede: 'de novo mamãe; a Cindelela de novo!'".

Desde os três meses de vida Isaac, que hoje tem 2 anos, ouve da mãe, Maria Alice Campagnoli Otre, historinhas antes de dormir. As fotos mostram o manuseio dos livros mesmo antes de saber o que letrinha com letrinha formaria. Numa época em que se discute tanto os conceitos formados em cima do que é de menino ou de menina, me chamou atenção a forma como Maria Alice escolheu de contribuir para que o filho no futuro tivesse uma cabeça diferente. 

O conto de fadas desta princesa que deixa cair um sapatinho ao sair correndo do baile não era exatamente a preferência da mãe, foi ao acaso. "Estava fazendo ele dormir e resolvi contar de cabeça, sem livros. Foi a que me lembrei", fala a mãe.

 
O contato com livros começou antes mesmo de ele  saber o que letrinha com letrinha formaria. (Foto: Arquivo Pessoal)
O contato com livros começou antes mesmo de ele saber o que letrinha com letrinha formaria. (Foto: Arquivo Pessoal)
 

Na versão da mãe, o conto não segue as páginas de um livro, vem da imaginação da jornalista Maria Alice e a mensagem que ela quer passar. "Eu mantenho quase tudo igual. Tiro apenas os adjetivos relacionados ao padrão de beleza e tento também tirar estereótipos de que o príncipe 'salvou' a Cinderela da infelicidade e pobreza, porque com um homem e um castelo ela será feliz. Digo que ela também salvou o príncipe da solidão e da tristeza", pontua.

Todas as noites, a Cinderela da história não tem um tipo físico ideal. "É uma moça amável, que sofre muitas injustiças ao lado de pessoas que não gostam dela. Na minha história, o príncipe se apaixona por uma moça inteligente, alegre e falante, não necessariamente 'linda'", diferencia a mãe.

E não é só ele que a liberta de uma vida sofrida para morar num castelo. Cinderela também o liberta de sentimentos que para o menino talvez ainda não tenha um significado: tristeza, da solidão, de uma vida sem graça e alegria.

"Na minha história há um relato em preto e branco, para o Isaac mentalmente colorir. A Cinderela pode ter a cor, o tamanho, o peso que quiser. O príncipe também. Cinderelas, Brancas de Neve, Belas adormecidas, podem ser grandes oportunidades de falarmos sobre coisas que estão pré-estabelecidas há muito tempo e precisam ser mudadas. Para os meninos e para as meninas", explica.

 
Conto vem da imaginação da jornalista Maria Alice e a mensagem que ela quer passar. (Foto: Arquivo Pessoal)
Conto vem da imaginação da jornalista Maria Alice e a mensagem que ela quer passar. (Foto: Arquivo Pessoal)
 

Isaac é, por enquanto, único filho de Maria Alice. Assim que a entrevista com a jornalista começa ela explica que criar um filho não é ciência e sim, uma arte. "Eu tenho convivido muito com 'isso é de menino', 'isso é de menina' e não quero criar um filho sexista. Essas histórias que serão contadas por alguém, num momento ou outro, a meu ver trazem posturas defasadas e que precisam ser questionadas. Então prefiro que ele ouça minha primeira versão", argumenta a mãe.

O conto de fadas narrado pela mãe não diz que Cinderela ganhou o príncipe porque era linda, ou porque ele estava sob um feitiço encantado. Também não relaciona a "sorte grande" de ela ter saído da pobreza e virado princesa. "Tento passar valores como respeito às características físicas de cada um, respeito aos gêneros e sobre a pouca importância dos valores materiais em um mundo tão pouco solidário", completa.

O menino só tem 2 anos e toda posição da mãe ainda é muito sutil diante da pouca idade, mas o que Maria Alice reforça é que se não começar agora, depois pode ser muito mais difícil, quando valores machistas e de desigualdades estão tão introjetados no nosso dia a dia.

"Eu acho que é preciso haver um bom senso, sem muitos radicalismos para também não tirar a fantasia da história. Mas indagar, questionar as posturas, o que se espera das personagens, acho que pode ajudar na formação de pessoas críticas e mais atentas aos problemas sociais".

 
Mãe dedica o que pode de melhor, por querer que Isaac seja o melhor que pode para o mundo.  (Foto: Arquivo Pessoal)
Mãe dedica o que pode de melhor, por querer que Isaac seja o melhor que pode para o mundo. (Foto: Arquivo Pessoal)
 

Isaac ainda não externaliza como imagina que seja a Cinderela, também porque o foco não está só na aparência, mas o que a mãe já percebeu é que o menino fica intrigado com o fato da madrasta e das irmãs não gostarem dela. "Também tem o encanto da roupa, da carruagem, da correria da saída dela da festa. Mas ele sempre me pergunta como chama 'essa mãe dela', acho que não se conforma com a rejeição", descreve Maria Alice.

O encanto é mantido e até potencializado quando a história caminha para o "felizes para sempre". "Eu canto a valsa do casamento dos dois, é geralmente nessa parte que ele dorme, depois de eu contar umas duas vezes", relata a mãe.

Maria Alice tem 31 anos, é jornalista, atualmente professora de Comunicação no curso de Publicidade, está finalizando o doutorado e engajada desde a gravidez no conceito de "maternidade ativa", que envolve parto natural, amamentação exclusiva até quando a criança quiser, educação sem palmadas, enfim, uma criação com apego e que quebra preconceitos.

"Digo que a maternidade me transformou completamente. Essa Maria Alice nunca existiu. Agradeço ao meu filho pela oportunidade de ser mãe e ter descoberto esse mundo à parte", resume.

Isaac foi muito esperado e a mãe dedica o que pode de melhor a ele, mas também vê o outro lado. "Quero que ele seja o melhor que pode para o mundo. As histórias ajudam muito nisso, versam sobre medos, inseguranças, conquistas e aventuras".

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